
As águas abertas deixam marcas indeléveis na vida das pessoas. Literalmente. Mauricio Gonzaga sempre quis fazer uma tatuagem, mas aos 66 anos ainda exibia a pele intacta. “Nunca achei um motivo forte o suficiente”, afirma ele. “Pensava que podia enjoar, então tinha que ser uma coisa minha, que eu gostasse muito.”
Em dezembro de 2023, Mauricio finalmente tatuou no braço esquerdo imagens em alusão à 14 Bis, tradicional ultramaratona em São Paulo, inclusive com o percurso da prova. “É um certificado para mim”, contou ele, que havia encarado a prova três vezes e concluído duas. “Tenho direito de fazer isso”, completou. O filho, Leandro, pagou pela tatuagem.

“Meu pai sempre falou que gostaria de fazer uma tatuagem, mas sempre foi algo meio distante, uma vontade que parecia que iria passar a vida toda”, conta Leandro. “Naquele momento ele realmente se sentiu mais confiante. Então quis dar esse presente pra ele.”
A 14 Bis, prova cuja primeira edição aconteceu em 1970, tem um lugar especial na vida de Mauricio, que faz menção à prova até em sua conta no Instagram. Em 2010, exames mostraram problemas de saúde. “Tinha um tumor que comprimia o cérebro. Não sentia nada, mas o médico indicou uma cirurgia ou poderia ter problemas futuros”, conta ele.
Guaru e Salsicha
Ao comentar sobre a situação com amigos, um deles, Edson Moreno, fez uma proposta: eles fariam a a 14 Bis juntos após a cirurgia. “Ele estava triste, para baixo. Eu falei: ‘Opera lá. Vai dar tudo certo e depois a gente nada juntos a 14 Bis”, afirmou Edson, que ganhou o apelido de Guaru, peixe ornamental com uma barriguinha característica, do amigo. “Era barrigudinho. Ainda tenho um pouco (de barriga), mas menos”, conta Guaru, que chama Mauricio de Salsicha.

Com o sucesso da cirurgia, a dupla passou a treinar para enfrentar os 24 km da ultramaratona. Até então as provas mais longas que eles havia completado foram de 7 km e 5 km. Após seis meses de treino, eles foram juntos para a prova, disputada pela última vez no sentido Base Aérea de Santos até o Forte São João, em Bertioga (SP).
“Eu não tinha experiência e, em determinado momento, também não tinha mais braço”, lembra Mauricio. Ele conta que, diferentemente de hoje, não havia a obrigatoriedade de um acompanhante para cada atleta. “Tinha um barco que estava acompanhando uma galera, ou seja, que ficava procurando as pessoas.”
Nunca mais?
Durante a prova, Guaru se desvencilhou de Salsicha e completou o percurso em 8h27min50s, praticamente 10 minutos antes do amigo (8h37min10s). Mauricio conta que, enquanto estava nadando, pensava que nunca mais iria fazer aquilo novamente. “Mas depois que você conclui a prova esquece tudo”, conta Mauricio, acrescentando que não conseguia levantar o braço.

A edição de 2011 foi a única de Guaru. “Prova longa assim não quero mais não”, afirmou ele, rindo. Diferentemente do que imaginou durante sua estreia e do amigo, Mauricio partiu para novos desafios. “Vi que não era tão simples e pensei: ‘Vou treinar mais’. Cheguei inteiro, tanto que fui eu quem colocou o caiaque em cima da picape”, afirmou ele, que diminuiu seu tempo em mais de uma hora (7h33min00s) na edição de 2015, já com o percurso invertido.
Relaxadinha e sensação broxante
Dois anos depois uma decepção. “Estava confiante, dei uma relaxadinha e achei que não precisava treinar tanto”, contou ele. Com 10 horas de prova, ele ainda não estava nem na ponte, ponto característico da prova, que marca cerca de 4 km para o final.
“Chegou uma hora que não aguentava mais e psicologicamente estava muito mal”, disse Mauricio, que confidenciou ao filho que sentia dores no braço. “Falei que iria tentar dar uma puxada, mas parece que estalou o braço. Desisti e foi broxante. Foi uma coisa que ficou na minha cabeça.”
Depois da tatuagem, o filho o “intimou” a encarar a prova mais uma vez. Ele começou a produzir documentários e um deles seria sobre a vida de Mauricio. “Pai, você vai ter que nadar a 14 Bis de novo.”

Mauricio tentou argumentar que uma prova daquele porte exigia um treinamento prévio, mas o filho conseguiu convencê-lo. Eles foram procurar a Associação 14 Bis, que organiza a prova e também alguns desafios que podem ser feitos em datas especialmente agendadas. Com o ultramaratonista Percival Milani, encontraram uma data com a tábua da maré favorável: 27 de março.
Treino no mar com amigos
Alguns problemas, porém, surgiram. Em dezembro, a piscina que Mauricio treina, em São Caetano do Sul (SP), fica fechada e só abriria após o Carnaval. A solução seria nadar na unidade do Sesi, na vizinha Santo André. A programação dos treinos não seria empecilho, já que o técnico Mirco Cevales, mesmo durante as férias, mandava uma planilha para os atletas que conseguissem outra piscina. Mauricio conversou com o técnico, que o tranquilizou dizendo que o desafio seria cumprido se ele seguisse o treinamento.
Na volta aos treinos, em São Caetano, um novo problema. Mirco deixou o comando da equipe master do PEC (Programa Esportivo Comunitário) da Prefeitura de São Caetano. Mauricio foi conversar com o treinador Rafael Pazian, que assumiu o posto. Rafa e Mirco trocaram figurinhas, e o novo técnico também deu aval para Mauricio seguir na aventura.
Ele passou a treinar em São Caetano e a complementar a preparação com sessões no Sesi, na represa Billings em São Bernardo do Campo e com um treino especial na Prainha Branca, com dois amigos que nadam no Sesi, Wilson Gambirazi e Jocimar Tercilotte, e com quem formou a equipe Super Masters para Ultra do Ita de 2022.
Relicário de uma vida
No dia 27 de março, Leandro disse ao pai que se ele não conseguisse não teria problema. “Mas eu já havia sentido o sabor da derrota uma vez e não iria subir no barco de novo”, afirmou Mauricio, que disse que estava muito nervoso antes de começar a nadar. “Eu coloquei o pé na água e a temperatura estava boa, foi aí que eu comecei a me acalmar.”

A quarta edição da 14 Bis na vida de Mauricio foi toda documentada por Leandro no filme “Mauricio, Simplesmente Gonzaga”. “Queria contar a história de vida do meu pai, que teve seus desafios e suas conquistas”, afirma Leandro. “A 14 Bis, e o esporte como um todo, traz um pano de fundo ideal para contar essas histórias.”
Ao acompanhar a tentativa de 2017, ele testemunhou a decepção do pai. “Foi um desafio e uma oportunidade muito boa para refletir sobre a vida”, afirma Leandro. “Afinal, assim como no esporte, ganhamos e perdemos.”
Como a Relify, empresa de Leandro que produziu “Mauricio, Simplesmente Gonzaga”, propõe, o filme é um relicário de uma vida. Em determinada parte do longa, o protagonista faz uma reflexão sobre o pai. “Tô aqui e consegui fazer coisas que talvez ele gostaria, mas não pode”, afirma. “Ele nunca sonharia subir aquele canal e ir até Santos de barco, quanto mais nadando. Isso é incrível, cara.”
Com colaboração de Rodrigo Zevzikovas
Texto sensacional. Me emocionei lendo. Já quero ver o filme
Bem legal Feu. Parabéns
Nossa muito linda a história do Maurício, seus desafios e conquistas! Inspirador e emocionante, parabéns Fe
A história do Mauricio é bem bacana mesmo!
Parabéns pelo texto e divulgue quando o filme estiver disponível.
Obrigado, Tula. O filme está disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Eov3b8s6AOQ Acompanhe os créditos que é divertido
Acreditar sempre, uma história emocionante , mostra o amante do esporte conquistar a sua vitória de completar a prova, parabéns amigos, Guaru( Edson Moreno), Salsicha ( Mauricio Gonzaga) , Leandro isso que é amor para seu pai, e na verdade tudo começou com nossas travessias de 1k, 3k, 5k, Barra Bonita, e nossas viagens de Kombi# com o Salsicha na direção (rachavamos o combustível) # sou o amigo Douglas e tenho um carinho especial com meus amigos ….linda msg”